A sociedade digital veio para ficar
Reportagem Jornal da Cidade
Entrevista. Mestre em administração, psicóloga e coach explica as mudanças que a tecnologia trouxe para as relações de trabalho
O panorama atual do mercado de trabalho é bem diferente do que há pouco tempo era considerado normal. Hoje, trabalhar com carteira assinada não é mais a regra e muita gente opta por realizar outras atividades remuneradas diferentes daquelas que antes eram sua profissão. Além disso, o momento de crise fez despencar o número de postos de trabalho, fazendo com que grande parte dos desempregados buscassem os famosos “bicos” para garantir o sustento do mês. Para a mestre em administração, psicóloga e coach Júlia Ramalho Pinto, esse fenômeno recebe o nome de GIG Work: “trata-se de uma relação de trabalho que compreende profissionais temporários e sem vínculo empregatício e empresas ou pessoas que os contratam para serviços pontuais.” Nesta entrevista, Júlia explica como funcionam os GIG Woks, suas vantagens e desvantagens. Confira:
JORNAL DA CIDADE No ano passado, o número de trabalhadores informais superou o de empregos com carteira assinada. A que você atribui esse resultado?
JÚLIA RAMALHO PINTO Não há dúvida de que estamos vindo de um cenário econômico complicado. Foram dois anos seguidos de recessão, 2015 e 2016, e o PIB de 2017 não foi o mais animador em termos de recuperação. Nesse sentido, uma solução para se sobrevier à crise foi redução das operações e corte de pessoas. Aliado a isso, há as forças tecnológicas que vão surgindo, como chatbot (um robô desenvolvido a partir de software de comunicação automatizada) e automações, que vão eliminando cada vez mais vagas do mercado. Nos últimos anos, os chatbots foram sendo implantados em empresas e universidades na área de call center do Brasil, por exemplo. Tudo vai gerando um cenário onde muitos se movem para o trabalho informal. Se não temos tantas vagas no mercado, sobra para o trabalhador fazer seus “bicos” e criar soluções de trabalho que são informais. Nesse sentido, a internet vem contribuindo com essas soluções, como é o caso das GIG Works que, em resumo, são uma relação de trabalho que compreende, de um lado, profissionais temporários de vários segmentos e sem vínculo empregatício e, de outro, empresas ou pessoas que contratam estes trabalhadores independentes para serviços pontuais.
Você acredita que a reforma trabalhista tende a aumentar o número de pessoas atuando na chamada GIG Work?
Os defensores da reforma trabalhista argumentavam que ela iria oferecer condições de se registrar/formalizar os trabalhos informais. Mas na verdade, o que se viu, em vários países que flexibilizaram as regras trabalhista, é o aumento de trabalhos precários. Aqui no Brasil não segue diferente. Com a reforma aprovada em novembro, os dados indicam que se gerou mais demissões de empregos com menos qualificação, como, por exemplo, auxiliares de escritório, motoristas, faxineiros, porteiros. Além disso, há o problema da “pejotização”. Neste país acaba tendo trabalho quem tem MEI (Microempreendedor Individual). Essa estratégia já vem sendo utilizada há anos pelas empresas e só tenho visto aumentar. Ou seja, em certa medida, acredito que essa mudança trabalhista não resolve nem de longe os problemas que temos. Agora, imaginem a força das novas tecnologias impactando estes trabalhos. Por exemplo, o fato de porteiros terem sido uma das funções mais demitidas, em que sentido não podemos afirmar que foi devido aos centros criados com porteiro a distância com câmeras? Um porteiro agora trabalha remotamente atendendo não um, mas vários prédios, por exemplo.
A relação entre patrão e empregado deve ser diferente na GIG Work?
Bom, se considerarmos esses trabalhos on-line em sua maioria fluidos, sob demanda e sem vínculo empregatício, muda tudo. Quem contrata serviço sob demanda não se sente responsável por quem o executa. Se ainda pensarmos sob o aspecto do contratado on-line, prevalece apenas as condições do contrato. Em geral, a empresa contratante impõe as condições do trabalho. O trabalhador/profissional aceita e executa nessas condições ou não será aceito para fazer este trabalho. Então, o que prevalece nestas condições é que as coisas não costumam ser exatamente negociadas. Por isso, se fala em precarização, por que é um jogo de forças que pode ser extremante perverso e danoso para quem executa. Mas, claro que para algumas empresas mais sérias, elas sabem que se querem atrair pessoas com qualidade, não podem colocar condições desumanas de trabalho.
Quais são as consequências dessa mudança nas relações de trabalho a longo prazo? Você acredita que essa tendência veio para ficar?
É difícil prever as mudanças que a GIG Economy vai acarretar para as próximas gerações de trabalhadores e para o mercado, mas a principal característica é a fluidez. Ou seja, é um mercado em que existe um elevado grau de adaptabilidade entre a oferta e a procura. Ela pode criar novas condições de trabalho, mas muito se discute que não necessariamente seriam em condições dignas. Existe o lado positivo de poder gerar mais possibilidade de trabalho para pessoas mais maduras. Além disso, para quem souber se posicionar nessas redes haverá possivelmente mais oferta de trabalho. É importante entendermos que o mercado de trabalho, as relações humanas e muitas profissões estão passando por grandes modificações. Ao que tudo indica, a sociedade digital veio para ficar e está transformando todas essas relações. Como profissionais, devemos estar atentos a essas mudanças e como isso poderá influenciar e afetar nossas profissões e carreiras.
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